UM RIO SEM FIM

O romance Um rio sem fim, de Verenilde Pereira, é uma obra fundamental da literatura brasileira contemporânea. Quase esquecida desde sua primeira publicação, em 1998, foi recuperada para o público em uma nova edição lançada em 2025 pela Editora Alfaguara.

A obra é polifônica e entrelaça ficção e história, ensaio e reportagem, memória e antropologia. A narrativa se passa em uma missão religiosa salesiana no norte do estado do Amazonas, dirigida pelo bispo italiano Dom Matias Lana, onde as meninas Maria Assunção, Maria Rita, Rosa Maria e Maria Índia são educadas sob forte repressão religiosa e forçadas a se adaptar a humilhações, castigos e a uma realidade estranha e hostil desde a infância.
Embora unidas pela origem, pela educação e pelas opressões que compartilham, os destinos das meninas — todas Marias — configuram diferentes versões de uma mesma condição e traduzem a complexidade subjetiva das mulheres indígenas.
Por meio da perspectiva das protagonistas, a obra revela as tensões entre os povos indígenas e os ideais civilizatórios impostos pelos colonizadores, sobretudo os religiosos, e a herança colonial na Amazônia brasileira, culminando em traumas e destruição, mas também em revolta e resistência. Um rio sem fim constitui uma crítica contundente ao colonialismo e à catequização forçada dos povos indígenas brasileiros, bem como à condição pós-colonial que perpetua as violências através das elites modernizadoras.
O contexto da trama é o de uma epidemia letal que devasta as aldeias indígenas, e a narrativa discute também o adoecimento, a morte por contaminação e a ameaça de extinção como resultado último do contato colonial e pós-colonial.
O surgimento da narradora — uma jornalista e pesquisadora — insere a própria autora na trama, relacionando-se ao trabalho de investigação realizado para sua dissertação de mestrado. Verenilde Pereira utiliza a literatura e a linguagem poética como formas de testemunho e resistência, dando voz àqueles que, por muito tempo, foram silenciados pela história oficial.

Verenilde Pereira tem origem afro-indígena, filha de mãe negra e de pai indígena da etnia Sateré-Mawé. É ativista da causa indígena, além de antropóloga, professora e jornalista, com diversos trabalhos publicados em jornais de Manaus e Belém, incluindo reportagens sobre garimpo na região amazônica.
Trabalhou no Jornal Porantim, o primeiro dedicado às questões dos povos amazônicos, distribuído gratuitamente em várias comunidades indígenas. Além de Um rio sem fim, é autora do livro de contos Não da maneira como aconteceu (Thesaurus, 2002).
Verenilde Pereira foi convidada para o FÓLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, em 2024, e para a 23ª edição da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em 2025. Em Óbidos, ao se referir à escritora Conceição Evaristo, afirmou que ambas escrevem — ou “escrevivem” — para “acabar com essa memória colonialista que fizeram de nós, negros e indígenas, e reverter isso através da literatura.”
🎧 Ouça a entrevista de Verenilde Pereira ao podcast Amazônia Latitude:
https://www.amazonialatitude.com/2023/07/31/verenilde-pereira-e-o-pioneirismo-na-literatura-afroindigena-brasileira/

O SOM DO RUGIDO DA ONÇA

Em O som do rugido da onça, Micheliny Verunschk trabalha sobre a história colonial e suas violências com uma perspectiva profundamente poética e comovente. A partir da história real de duas crianças indígenas levadas à Europa no século XIX pelos naturalistas Spix e Martius, a autora recria suas trajetórias sob um olhar sensível ao sofrimento, ao exílio e à perda da identidade.
Entre a história e o mito, a prosa de Verunschk mistura seu próprio lirismo à força da oralidade dos povos originários. A voz da Onça Grande, entidade ancestral, atravessa a narrativa e conduz o reencontro simbólico entre o humano e o animal, o corpo e o espírito, a vida e a memória.
A trama também se estende ao presente, quando Josefa, mulher contemporânea, descobre a história das crianças e, com ela, redescobre as próprias raízes indígenas — um espelho daquilo que o Brasil insiste em esquecer.
Com uma linguagem inventiva e arrebatadora, O som do rugido da onça convida a ouvir o que há de mais profundo na experiência de ser e pertencer: o rugido que resiste dentro da história e da terra. 

Sobre a autora
Micheliny Verunschk Pinto Machado, conhecida como Micheliny Verunschk, é uma escritora, crítica literária, compositora e historiadora brasileira. É autora do livro de poemas Geografia íntima do deserto, (Círculo de Poemas, 2024), O movimento dos pássaros (Martelo, 2020), ganhador do Prêmio Biblioteca Nacional de 2021; os romances Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá 2014), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura de 2015, e O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), ganhador dos Prêmios Jabuti e Oceanos em 2022. É autora ainda do livro de contos Desmoronamentos (Martelo, 2022), ganhador do Prêmio Biblioteca Nacional de 2023. Sua obra mais recente é o romance Caminhando com os mortos (Companhia das Letras, 2023), vencedor do Prêmio Oceanos 2024.
Em entrevista recente (julho/2025) ao jornalista Bruno Inácio, a escritora Micheliny Verunschk revela que sua grande obsessão literária é pensar e fabular o Brasil — compreender seu povo, sua história e suas contradições. Ela afirma que esse tema não é apenas uma escolha intelectual, mas parte essencial de sua própria vida: atravessar e ser atravessada pelo território brasileiro.
Sobre o processo criativo, destaca que a linguagem tem mais peso que o enredo, pois é o modo de contar a história — e não apenas o que se conta — que estabelece a relação encantatória com o leitor. A linguagem, para ela, é ferramenta de ofício e de criação estética.
Por fim, Micheliny afirma que o que move sua escrita é o que a move na vida: a anima, entendendo o ato de escrever como parte inseparável de sua própria existência.
A entrevista reafirma Micheliny Verunschk como uma autora comprometida com o Brasil e com a linguagem, cuja obra literária une rigor estético, reflexão histórica e sensibilidade social.
Confira a íntegra da entrevista: 

https://diplomatique.org.br/micheliny-verunschk-escrever-e-parte-indissociavel-de-quem-sou/https://www.amazonialatitude.com/2023/07/31/verenilde-pereira-e-o-pioneirismo-na-literatura-afroindigena-brasileira/